segunda-feira, 12 de abril de 2021

Uma Contribuição para o Memorialismo


Este blogue tem por principal objetivo a divulgação de transcrições de textos de memorialismo e crónica militar, com ênfase especial em testemunhas presenciais. É fundamentalmente uma contribuição para um corpus de memorialistas militares luso-brasileiros dos finais do Antigo Regime e para a sua apreciação histórica e literária.
Com esses objetivos, o blogue é também uma homenagem aos veteranos de há 200 anos, falecidos há já muito tempo, para que as suas vozes e as suas experiências sejam lembradas.
O foco especializado no finais do Antigo Regime e no Brasil Colónia, Reino e primeiro reinado do Império é também uma escolha tendente a concentrar buscas numa área reduzida, por forma a maximizar os resultados.
Agradeço qualquer ajuda ou pista para novos textos ou correção de antigos. Boa leitura.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Itinerário das Campanhas que tiverão princípio no ano de 1816 (J. J. Machado de Oliveira)


“Itinerário das Campanhas que tiverão princípio no ano de 1816".

Autor: José Joaquim Machado de Oliveira (Legião de São Paulo)

Datas extremas: 18.3.1816 - 9.3.1820

(Publicado em Revista do Arquivo Municipal, Ano VI, Volume LXXII, Novembro-Dezembro 1940, São Paulo, Departamento de Cultura da Prefeitura, pp. 5-20) [Leia online aqui - abre nova página]


* * *

[Início]

1816. 1.ª Campanha. 

Março 18. Saí de Pôrto Alegre embarcado e com tropa - 23. Cheguei à Vila do Rio Pardo.

Julho, 29. Saí de Rio Pardo com tropa, e acampamos na Picada. 30. Na Cruz Alta. - 31. No Campo de Felipe Carvalho.

Agosto 1. No Arroio Butucaraí. Passo de cima. - 2. No Capão dos Enforcados. 3. No Passo de Jacuí, aonde se esteve o dia. 4. Ocupado na passagem do rio. - 5. A meia légua distante daquele passo. - 6. No Passo da Estiva. – 7. Na Restinga Seca, estância de Antônio Gonçalves Borges. - 8. No Arroio do Sol, aonde se esteve também o dia 9, por chover muito. - 10. No capão de Manuel Paim. - 11. No Arroio de Santa Maria. - 12. No capão da eståncia do Pompeu. - 13. No rodeio velho das éguas do Felipinho ou Felipe Santiago. - 14. Na estância do Serino (Cirino ?), irmão de meu pag. (pagem ?) Domingues. - 15. Na estância do tenente-coronel Carneiro, ou Pau Fincado. — 16. Na estância de Manuel Ferreira, seu genro. - 17. Na estância de São Felipe. - 18. Na margem esquerda do Arroio Cacequi. Morreu afogado o cabo Malaquias. - 19. Ao pé da estância do inglês Daniel Luiz Carlos. - 20. No Passo do Rosário, aonde estivemos até o dia 29. - 30. Ao pé da estância de Pacheco de Lima. - 31. No Vacacuá. estância de Antônio Caetano. 

Setembro 1. Na Guarda da Conceição. aonde estivemos os dias 2 e 3. - 4. No Arroio da Porteira (?) ao pé da estância de Inácio Adolfo. -. 5. No Pôrto do Alferes Pinto.- 6. Nas cabeceiras do Ibirapuitã Chico, aonde estivemos o dia 1. - 8. No campo de João da Costa. - 9. Em São Diogo. - 10. ... pontas do Arroio de Valença. - 11. Acampamos no Boqueirão das Lagoas - 12. Na tapera do Leme, ou Capão do Cirurgião. Ali chamando-nos o Abreu (tenente-coronel José de Abreu) a conselho, decidiu-se que deviamos ir à Provincia das Missões, já invadida pelos insurgentes deixando a nossa marcha para Belém. - 13. No Suaraim chico. - Passo das carretas 14. No Arroio Garopá. - 15. No Arroio Camoatim. - 16. No Arroio Caoati.  -- 17. Num dos galhos do Toro-passo. - 18. No Arroio Toro passo, aonde estivemos o dia 19, passando 0 Arroio, que estava de nado. - 20. No Arroio Cochi-passo. Foram vistos alguns bombeiros (espiões) do inimigo. - 21. Na estância do Aferidor. Ali fizemos passar para o outro lado do Uruguai os Insurgentes, que se achavam, tanto na estancia, como no Passo de Santa Maria no Ibicui, aprisionando-se 2 homens e 6 mulheres (?) e alguma cavalhada. Falhamos o dia 22. - 23. No Ibiraocaí - 24. Acampámos no Ibiricui, aonde estivemos passando o dia 25. - 26. Na estância de Joãozinho de Oliveira. Neste dia bateram-se duas partidas inimigas, que andavam em saque. Foram mortos 16 insurgentes e 10 mais prisioneiros. - 27. No Tuparaí. Neste dia bateu-se uma partida inimiga e foram mortos 16 insurgentes e 10 mais prisioneiros. - 27. No Tuparaí. Neste dia bateu-se uma partida inimiga e foram mortos 26 insurgentes. - 28. Na estância do Padre Alexandre, aonde falhámos o dia 29, por chover muito. Foram vistos dois bombeiros (espiões) do inimigo. - 30. No capão de João Machado. 

Outubro 1. Na margem direita do Arroio Butuí, de nado. - 2. Além do Banhado de S. Borja. Ali estivemos até o dia 4. 5. No outro lado do Banhado de S. Borja. - 6. Neste dia fomos. ao Butuí, na sua barra, como não encontramos uma partida inimiga que ali fôra vista, retrogradamos... chovia. - 7. Acampamos no Povo de S. Borja, e ali estive até o dia 23, ocupado numa inquirição - 24. No Ivaí, aonde estava a divisão. - 25. No Capão de Butuí. - 26. No Butuí-chico. - 27. No pôrto da estância de Santa Rosa. - 28. No Ibicuí, Passo de S. Rosa e ali nos demoramos o dia 29 na passagem. -- 30. No capão da estância do tenente Olivério. - Na margem esquerda do Ibirapuită, Passo Guassú.

Novembro 1.º No Pai-passo. 2. Na tapera de Inácio dos Santos Abreu, – 3. Em S. Diogo. Ali se achava o Regimento da Ilha. - 4. No acampamento do Ibirapuitã, aonde estava o exército, Ali estivemos até 20 de dezembro.

Dezembro - 25. Marchou todo o exército e acampamos ao pé da estância do Cláudio. - 26. Saí para o Côrpo da Vanguarda, e acampamos ao pé da tapera do Cláudio, aonde se falhou o dia 27. - 28. Acampamos no campo de Juca Mingote. - 29. No Indahim, onde se falhou o dia 30. - 31. A vanguarda marchou um quarto de légua sobre a frente, aonde se falhou o dia 1.º de janeiro de 1817. 


1817.

Janeiro 2. No Arroio Catalã. A vanguarda marchou às 6 da tarde para o Arapeí, chegou alí a 3, atacou o acampamento inimigo e voltou no mesmo dia para Catalã, aonde chegou às 7 da tarde. No dia 4 houve nesse lugar a batalha de Catalã, e falhou-se o dia 5. - 6. Num dos galhos do Arroio Catalã, aonde se falhou os dias 7. 8. 9 e 10. - 11. Na barra do Catală, aonde se falhou os dias 12, 13, 14 e 15. - 16. No Suaraim, no Passo do Lageado. Dêste lugar saí em diligência para Pôrto Alegre a 29 e fui pernoitar na estância de João dos Santos Abreu. 30. No porto da estância de Joaquim Luiz - 31. Na estância de capitão Brito.

Fevereiro 1. Na estância do tenente-coronel Antônio Pinto. - 2. Na estància de S. João. - 3. Pernoitei nos Morais. - 4. Na Cachoeira. - 5. Em Rio Pardo. - Embarquei para Porto Alegre. - 8. Em Porto Alegre, aonde estive até o dia 3 de março, e embarcando com tropa para o Rio Pardo, ali cheguei no dia 11.

Março 15. Saimos de Rio Pardo e acampamos no Capão da Vendinha do Arroio das Pedras. -16. No Butucaraí. Passo da Ponte. - 17. No Passo de S. Lourenço no Jacuí, 18. Em Santa Bárbara. - 19. Na estância do Corcundinha. - 20. No Arroio da estância do capitão Freire - 21. No ... de Luiz Machado - 22. Na estância do Padre João de Almeida. - 23. No Vacacaí, estância do coronel Pinto. - 24. No pôrto velho do Batoví. -- 25. No Passo de S. Borja. - 26. No Capão do Severo. - 27. Na Guarda da Conceição, donde se falhou o dia 28, por quebrar-se o eixo do carro. 29. Acampamos no pôrto de Joaquim Luiz. - 30. Na Estância do Tulio. 31. No campo de Juca Mingote.

Abril 1. No acampamento do exército no Suaraim, aonde estivemos até 20 de março de 1818, e a 21, marchando o exército, saí daquele acampamento com a tropa comandada pelo coronel Abreu, e acampamos no Arroio Sarandi.


1818.

Março 22. Nas pontas do Sarandi. - 23. No Arroio do Areal, estância do Guarda-mor. - 24. No Capão do Tigre, estância de Joaquim Pôrto. ---- 25. Nas pontas do Nhanduí, onde se falhou o dia 16, por chover. -- 27. No capão da estância de Gaspar Nunes. - 28. Na capela de Alegrete. Saí dêste lugar para Porto Alegre em diligência no dia 3 de junho e fui pernoitar na estância do Dornellas.

Junho 4. Na estância do major João Machado Bitancourt. - 5. Na estância do Severino. --- 6. Pernoitei na estância do capitão José Machado. - 7 No pôrto da estância de S. João. - 8. Na estância do alferes Machado.- 9. Na freguezia da Cachoeira. – 10. Na vila de Rio Pardo, aonde embarquei no dia 11, e no dia 12 cheguei a Pôrto Alegre.

Saí de Porto Alegre em 6 de novembro, embarcado, e cheguei a Rio Pardo a 12 do dito, de onde saí a 23 e pernoitei na chácara do capitão Bernardo. - 25. No Passo de S. Lourenço.-- 26. Em Santa Bárbara. -27. Na estância de Manuel Rodrigues Penteado. - 28. No Adolfo. 29. Na tapera de Luiz Machado. - - 30. Na estância do padre João de Almeida.

Dezembro. 1. Na capela de S. Gabriel. - 2. Na cochilha de Jubatuim. - 3. Na estância de Antônio Francisco. -- 4. No Passo do Rosário. - 5. Na estância da Côrte Real, no Capão. 6. Ao pé da estância de Pacheco de Lima. - 7. Na estância do capitão Florêncio. -- 8. Na estância de José Maria. - 9. Na capela de Alegrete. Primeiro movimento da guarnição para a fronteira. A 25 de dezembro saiu de Alegrete a guarnição e foi acampar no Arroio Pai. Passo. - 26. No mesmo Arroio. No Passo da Marmota. - 27. Na estância da Marmota. -- 28. Numa das pontas do Pai-Passo. - 29. 

[1819]

Em outra ponta do dito, aonde estivemos até o dia 4 de janeiro de 1819, e no dia 5, marchando-se para a fronteira, soube se que o inimigo se retirara, e por conseguinte retrogradou-se, e acampamos no arroio da divisa do Marmota. 6. No lado esquerdo do Ibirapuitã. - Passo guassú. 7 - Na capela do Alegrete.

Segundo movimento. A 1.º de Abril saímos da Capela de Alegrete, em consequência da segunda invasão das Missões, e acampamos a meia légua distante dali, à margem do mesmo Ibirapuitã, e dêsse lugar passamos para o Pôrto das Pedras, ao pé da Capela, a 10 do dito mês. A 17 chegou o sr. Conde da Figueira, e a 20, movendo-se a divisão, acampou do outro lado do Ibirapuità - Passo guassú. 

Maio 21. Num capão do campo do Joaquim Machado. 22. No Ibicuí, Passo de S. Rosa, aonde nos demoramos a passá-lo o dia 23. ---- 24. No Pôrto de .... de S. Rosa. -- 25. Nas pontas do Butui. - 26. Nos capões ao pé da estância de S. Gabriel -- 27. No Camacuã. Ali nos reunimos com a tropa do marechal Chagas. -- 28. No Itaraoquim. 29. No capão do pôrto do Severino. - 30. Piratini, Passo Novo da Figueira. -- 31. Ao anoitecer marchamos, e ao amanhecer paramos em uns capões ao pé da estância de S. Jerónimo. 9.

Junho 1. Ao anoitecer marchamos e fomos amanhecer no dia 2 no Povo de S. Luiz, e acampamos fora - 3. Acampamos dentro do Povo de S. Luiz, aonde estivemos até o dia 9. 10. No Passo de Pirajú. - 11. Nuns capões de S. Jerónimo. -- 12. Estando assentado... no Arroio Guaraçá, marchamos para o Povo de S. Nicolau, por saber que o inimigo o evacuava. - 13. Marchamos com destino para o Passo de S. Isidoro, e por se achar o Arroio Jacatobá de nado, aí acampamos. - 14. Meia légua distante do Passo Geral do Piratini. 15. Apartando-se a Legião da divisão, para unir-se ao Côrpo de Abreu, acampou no capão do Porto do Severino.- 16. Em Itaroaquerim. - 17. Na estância de S. José, do Chagas, - 18. No Passo de S. José do Camacuã. -- 19. No G...iaçai, aonde se achava a tropa do Abreu. - 20. Nos capões ao pé da estância de S. Gabriel... 21. Nas pontas do Butui. - 22. Acampamos no capão da estância do Cunha. -- 28. No Ibirapuitã, Passo guassú.- 29. Na Capela de Alegrete.

Julho - Nos dias 4, 5, e 6 de julho marchou a divisão do brigadeiro Abreu, e eu fiquei para me retirar para Pôrto Alegre em consequência do meu emprego. - 31. Saí da Capela de Alegrete e pernoitei na estância de Felipe Carvalho.

Agosto. 1. Em Taperí, chácara de Joaquim Leonel. 2. No banhado de Saicã, meia légua distante do Pôrto da estância de Antônio Franeisco. -- 6. Na estância do major Tomaz 7. Na Capela de S. Gabriel, aonde falhei o dia 8. - 9. Na estância do tenente-coronel Antônio dos Santos - 10. Na estância do Mancio. - 11. Na estância do Quartel Mestre. - 12. Pernoitei na estância do Machado Gordo, ao pé da estância do tenente Ricardo. -13. Na chácara de Manuel Joaquim Teixeira no Capão dos Enforcados. 14. Na Cruz Alta. - 15. Em Rio Pardo, aonde embarquei a 17, e a 19 cheguei a Porto Alegre.


2.ª Campanha, 1820. 

Janeiro. Na noite de 2 saímos de Porto Alegre com & infantaria e a artilharia do meu comando, e chegamos a Rio Pardo a 8, e no mesmo dia acampamos no lado direito do Passo do Rio Pardo. - 9. No capão da Cruz Alta. - 10. No Passo de S. Lourenço no Jacuí. - 11. Nos Morais. - 12. No Arroio do Lageado, divisa de S. Jo... 13. No Passo de Carutaí. - 14. No Arroio do Lageado no campo de S. Fidélis. -- 15. No Passo de S. Borja. - 16. Na estância de Placido Severo. - 17. No Passo de Ibicuí-Chico. - 18. Acampamos duas léguas distantes de Itaquatiá. - 19. Em Itaquatiá, aonde estava o exército. - 20. Na tapera de d. Ramon. --- 21. Chegámos ao Passo do Sutil no Cunhapirú, e aí, esperando a noite, marchámos para o Taquarembó Grande, aonde chegámos na manhã de 22, em que atacamos o inimigo e o derrotamos. Aí estivemos nos dias 23 e 24. - 25. Retrogradamos para o Passo do Sutil. - 26. Acampamos no Cunhapirú. - 27. Nas pontas do Ibicuí. - 28. Nos morros de S. Ana. - 29. No Sarandi, - 30 No Funchal. --- 31. No Pai-Passo, pontas.

Fevereiro. - 1. No Passo do Pai Passo. - Em Alegrete. Aí ficamos até o dia 21. - 22. No Arroio do Lageado. - 23. No Arroio Jaguaquá. - 24. No tenente-coronel João Machado. - Falhamos o dia 25, por chover. - 26. Acampamos no Arroio Cacequí. - 27. Em S. Gabriel. - 28. No Fidélis, aonde estivemos o dia 29.

Março. - 1. No Arroio .... 2. Na tapera de Luiz Machado. 3. No Passo de S. Bárbara. - 4. Na estância do tenente Ricardo.- . No Arapoá. - 6. Na estância do Bibiano. - 7. No Arroio Francisquinho. - 8. No Arroio dos Ratos. – 9. Em Porto Alegre".

[Fim]


* * *

Pequena biografia

O capitão José Joaquim Machado de Oliveira nasceu em São Paulo, a 8 de Julho de 1790, filho do  tenente coronel Francisco José Machado de Vasconcelos e de D. Ana Esmerina (Esméria ou Esmênia) da Silva.

Com um ano e meio de idade, o pai assentou-lhe praça mas só em dezembro de 1807, já com 17 anos, foi reconhecido cadete.  É Alferes em 1809, tenente em 1811 e, finalmente, graduado em capitão em 13 de Maio de 1813, pelos seus serviços na Campanha de 1811-12.

Em 1816, com cerca de 26 anos, é capitão de infantaria da Legião de Voluntários Reais, de S. Paulo, e participa com distinção, nos combates do Passo de Yapeyú e na batalha de S. Borja, e, já em Janeiro, na Surpresa de Arapey, sempre sob o comando direto do tenente coronel José de Abreu.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Relação dos Serviços que pratiquei na conquista dos Sete Povos das Missões (Manuel dos Santos Pedroso, 1801)


Rellação dos servissos que practiquei na conquista dos sete Povos Guaranis das Missoens orientaes do Uruguay, desde o principio até o fim da Guerra proxima passada.

[Manuel "Maneco" dos Santos Pedroso]

LEIA TAMBÉM
Fonte: Aurélio Porto, História das Missões Orientais do Uruguai, 2.ª edição revista e melhorada pelo padre Luís Gonzaga Jaeger, S.J. SEGUNDA PARTE, Selbach & Cia., Porto Alegre, 1954. (Coleção JESUÍTAS NO SUL DO BRASIL, VOLUME IV). - pp. 293-301.
[abre nova página]

Havendo-me aprezentado voluntariamente na Goarda avançada de S. Pedro ao Cap.tam de Dragoens Comand.te Fran.co Barreto Pr.ª Pinto [Francisco Barreto Pereira Pinto (1758-1804)] oferecendo-me para o servisso de Guerra, logo que se deo ordem para hostilizar aos Espanhoes, me encarregou o d.to Capitão Comand.te de atacar a Goarda Fronteira Espanhola de S. Martinho, o que eu executei promptam.te fazendo retirar aos Espanhoes, que ali se achavão, e sem demora participei esta noticia ao Sobredito Capitão Comand.te, o qual tomando conta da dita Goarda de S. Martinho, e goarnecendo-a com gente nossa me ordenou, que visto falar eu o Idioma Guarani, me avansasse com os mesmos 20 homens p.ª os estabelecimentos dos Indios das Missoens, a fim de os persuadir, a que se revoltassem a nosso favor, e serem Vassalos Portuguezes, para o que nós os auxiliariamos.
Passei as Estancias dos Povos de S. Lourenço, e S. Miguel nas quaes falei aos Indios, que alem de me auxiliarem com as cavalgaduras, de que precizei, me assegurarão que todos dezejavão passar ao Dominio Portuguez para o que necessitavão o nosso socorro, e participando elles os meus avizos aos seus respectivos Corregedores, escreverão estes sem demora ao mesmo capitão Comand.te assegurandolhe o desejo, e boa vontade que todos tinhão do nosso soccorro para serem Vassalos de Sua Alteza real.

Deichei sete dois meus camaradas de Patrulha na estancia de S. Pedro, e com licença do mesmo Capitão de Dragoens Com.te voltei a minha Estancia de S. Pedro, a refazer-me de algumas couzas, de que precizava, e a ajuntar mais alguns Camaradas; o que tudo fiz em quatro dias, e tornei para a dita Goarda de S. Pedro, aonde o referido Cap.tam  de Dragoens Com.te me encarregou o Commando de hua Partida de 40 homens para hir soccorrer Jozé Borges do Canto [José Francisco Borges do Canto (1775-1805)], que se havia dirigido a atacar o Povo de S. Miguel, aonde cheguei hum dia despois de o dicto Canto haver subprendido, e atacado o Acampamento huã Legoa distante daquelle Povo.
Segundo as ordens que me deo o citado Capitão Comm.te, me ofereci para ajudar, ou auxiliar com a minha Partida ao Sobredicto Canto; o qual dizendo-me que ali não hera tão necessario o meu soccorro, como na Costa do Rio Uruguay em razão de haver apanhado cartas do Gov.or de Missoens [Joaquín de Soria-Santa Cruz y Guzmán (1748-1814), governou entre 1800 e 1802] para o Ten.te Gov.or do Povo de S. Miguel [D. Francisco Rodrigo], nas quaes lhe dizia, que naquelles e dias o socorria com reforço de gente, me encarreguei da defeza dos Passos do Uruguay, para com mais segurança o referido Canto obrigar, e constranger a render se o dito Ten.te Gov.or; que se achava encerrado no Colegio do mesmo Povo de S. Miguel com 150 homens d'Armas, e 10 Pessas de Artilharia.

Encaminheime sem demora para o Uruguay, e com a noticia, que derão os Bombeiros Espanhoes da minha marcha, duas Partidas Espanholas, que vinhão pelo Arroyo Pirajú, a Estancia de Santiago em socorro do sobred.to Ten.te Gov.or; sendo cada huã de 50 homens retrocederão, e passarão o Uruguay em cujo passo de S.to Izidro encontrei no dia 11 de Agosto o Ten.te de Dragoens da Partida Espanhola da Demarcação com 6 Dragoens e 12 Milicianos, aos quaes tomei as armas, e deixei que passassem o Uruguay visto hirem de retirada da dicta Demarcação.
Do dicto Passo fiz retroceder 6 carretas para // o Povo de S. Nicolao, carregadas com Alfaias da Igreja, e generos dos Armazens, que o seu admenistrador pertendia fazer passar ao outro lado do Uruguay, o que tudo fiz recolher ao mesmo Povo, entregando ao Pad.e cura, o que pertence a Igreja, e ao Corregedor, o que se havia tirado dos Armazens.

No seguinte dia tendo eu noticia, que o referido Ten.te Gov.or tinha sahido do citado Povo de S. Miguel, e se dirigia a passar o Uruguay com 140 Espanhoes de Armas, 10 pessas de Artilharia, e hua Carreta com petrechos de Guerra, e que varios Espanhoes se incorporavão a esta Partida, me puz em marcha com 0 homens a fim de lhe tomar o armamento, e fazela retroceder, o que pratiquei no Povo de S. Luiz, aonde encontrei sem embargo da Capitulação, que alegava o mencionado Ten.te Gov.or haver ajustado com o citado Jozé Borges do Canto; porq.to receando eu, e sendo m.to provavel, que de este Corpo de gente armada chegase ao Uruguay, e se reunisse a outro numero de Espanhoes, cuja passagem para o lado de cá podia favorecer abuzando do indulto da mesma capitulação, seriamos obrigados a evacuar as Missoens, e perdermos o trabalho desta conquista, que tinhamos conseguido com tanta felicidade, visto a pouca gente nossa que então lá havia.
Dei parte desta minha rezolução ao referido Capitão de Dragões Com.te, que mandou sem demora hum dos cadetes seus filhos com hum capitão miliciano para deterem o mesmo Ten.te Gov.or, e demais Espanhoes até segunda ordem, e poucos dias dipois o capitão de cavallaria Miliciana Jozé de Anxeta [José de Anchieta Furtado de Mendonça (1756-1829)] com a sua companhia[,] 10 Dragoens e hũ Furriel.

Voltei ao Povo de S. Nicolao, aonde chegou este socorro; e tendo eu goarnecido os Povos de S.ta Maria, S.to Izidro e S. Lucas acompanhei com 10 homens da minha Partida ao dito Capitão Ancheta, que se poz em marcha com a sua companhia para o Povo de S. Francisco de Borja; cujos habitantes solecitavão de continuo o nosso soccorro: Nesta marcha deixou o sobredicto Capitão Anxeta sete homens de Patrulha no Povo de S. Marcos; cuja Patrulha foi atacada na noite do dia seguinte pelos Espanhoes em grande numero ouvindo-se do dicto Povo de S. Fran.co de Borja ao amanhecer os tiros, parti sem demora com 10 homens a socorrer a dita Patrulha, que tendo perdido os seus cavallos, e perseguida dos Espanhoes procurava ganhar o Passo de Camaucam; mas logo que o Inemigo vio que chegavamos de soccorro, se poz em retirada atravessando o Uruguay, deixando em nosso poder 500 animaes, entre cavallos, e gado vacum: Neste ataque alem dos espanhoes feridos, morrerão quatro, e da nossa parte só morreo hum Miliciano.

Tendo chegado para Com.te dos sobred.tos Povos o Major de Dragoens [sargento mor José de Castro Morais], recebi deste ordem para lhe falar, e em consequencia me puz em marcha com os meus 10 camaradas para o povo de S. Luiz, de onde acompanhei ao d.to Major na diligencia de reconhecer  os sobred.tos Passos, que eu havia goarnecido com os camaradas da minha Partida e varios Milicianos.
Nesta occasião passou o Ten.te Gov.or com a sua familia para o outro lado do Uruguay. Segui acompanhando o m.mo Major nos reconhecim.tos dos Passos de baixo, até o sobred.to Povo de S. Fran.co de Borja.
Havendose prendido um Bombeiro Espanhol, que nos deo noticia de haver no Arroyo Camacuam 5 legoas distante deste Povo huã Partida Espanhola de 12 homens, que andava bombeando o m.mo Povo me // ordenou o referido Major a fosse eu atacar, o que fui immediatam.te com 10 homens, de que rezultou morrerem 2 Espanhoes, fugirem os mais, e tomarmos 25 cavalos, dos quaes 5 herão encilhados, sem haver nenhum prejuizo da nossa parte.

Voltei acompanhando o citado Major para o Povo de S. Nicolao ahonde havia chegado [23 de Setembro de 1801] o major Joaquim Felix da Fonseca [Joaquim Felix da Fonseca Manso] para Com.te dos mencionados sete Povos, dos quaes se retirou para a Fronteira do Rio Pardo o referido Major de Dragoens.

Aprezenteime ao d.to major Command.te Joaquim Felix procurando as suas ordens e dando-lhe conta de tudo quanto eu até então havia praticado nos mesmos Povos. Encarregou-me da defeza dos sobred.tos Povos de S.ta Maria, S.to Izidro, e S. Lucas; os quaes sendo atacados successivam.te com forsas superiores pellos Espanhoes, forão estes sempre rebatidos com perda deixando a 1.ª vez no Passo de S. Lucas 8 homens mortos, da 2.ª no Povo de S.to izidro levarão muitos feridos; e da 3.ª e, S.ta Maria levarão 2 mortos e1 ferido, não havendo da nossa parte em todos estes ataques mais do q 1 homem morto.

Havendo no Povo de S. Lucaz hua Goarda Espanhola de 30 homens, me ordenou o sobred.to Major Com.te passasse eu com 80 homens ao d.to Povo a fazer as hostilidades, que se podese, o que eu executei no dia 21 de Novembro passando o Uruguay pella meya noite, e atacando a dita Goarda pellas 9 horas do dia, ao tempo que recolhião a cavalhada.
Matamos 4 Espanhoes, aprizionamos 3, e os mais fogirão deixando em nosso poder 100 cavallos.
Fiz montar a cavallo sem demora 20 homens e os mandei bombear até hua legoa distante do Povo da Conceição recolhendo ao mesmo passo os animaes Cavallares, e Vacuns, que encontrassem e quando chegavão de retirada com 200 dos d.tos animaes, vinha em seu alcance hua Partida de 150 espanhoes, aos quaes ataquei com alguns tiros de clavina, de que morrerão 3, e os mais se retirarão, logo que descobrirão a nossa gente: Pouco tempo depois na acção de passarmos os d.tos animaes se encaminharão ao Passso, onde nos achavamos, 300 Espanhoes pouco mais ou menos fazendo-nos fogo com 3 pessas de Artilharia: então os atacamos no mesmo passo com tiros de clavina, e lhes matamos 8 homens incluzo o seu Command.te, aprizionamos outros 8, alem dos feridos, que levarão, e tomamos as dictas 3 pessas de Artilharia com a sua palamenta retirandose desordenadamente os demaes Espanhoes sem haver da nossa parte em todos estes ataques ferido algum.
Continuamos a passar os dictos animaes. Sete canoas que tomamos; e as sobredictas 3 pessas, que conduzimos para o Povo de S. Nicolao.

Quando pensavamos em atacar hum Acampamento de 400 Espanhoes Commandados por um Coronel de Milicias, chegou a declaração da Paz, que se publicou em 24 de dezembro de 1801.

Porto Alegre, 9 de Setembro de 1802
Manoel dos S.tos Pedrozo

esta conforme com o original
Francisco João Rossio

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Fonte
Biblioteca Nacional (Brasil), manuscritos, I-31,26,002 (online)

sábado, 28 de abril de 2018

Celebração da Paixão de Jesus Christo entre os Guaranys (Março de 1818)


A CELEBRAÇÃO DA PAIXÃO DE JESUS CRISTO ENTRE OS GUARANIS.
(Episódio de um Diário das campanhas do Sul.)
Por José Joaquim Machado de Oliveira, Sócio efetivo do Instituto.

Os Americanos devem procurar na historia, nas scenas da região que habitam, os quadros, os similes, as imagens, para compor ou adornar os seus escriptos !.... PANORAMA.

I.
A Capella de Alegrete.

No outono de 1818, o acampamento de Alegrete, que fora improvisado em dois dias na margem esquerda do Ibirapuitã (1) pela famosa coluna do General José de Abreu, depois que separou-se da divisão do General Curado, ia-se metamorfoseando em capela, que na Província de S. Pedro é o preliminar de grandes povoações. O primeiro assento do arraial militar foi na ourela do rio, onde este descreve a sua maior sinuosidade, e tem no centro o Passo-geral, que é um ponto convergente de diversas estradas e caminhos, que vem de diferentes povoações e estâncias da campanha. Mas, si esta localidade era azada para o alojamento temporário de guerreiros, que, fatigados de longas marchas, de vigorosas escaramuças contra as hostes de Artigas, e do regido serviço do acampamento do Quaraí, anhelava um paradeiro, que pusesse termo a tamanha lida, não preenchia o objeto e as esperanças do chefe entre-riano, cujo pensamento era erigir uma povoação, que simbolizasse á posteridade seus feitos de armas, e chama-se a civilização e o comércio ao país, que abrangia suas grandes estâncias, e formava o seu melhor apanágio. Esta empresa tinha por fundamento um direito tradicional, que competia aos generais continentinos no cabo de suas campanhas, e para perseverar a extensa autoridade de sua temível espada no remanso da paz e fora das contendas marciais.

(1) Rio de Pau-vermelho, ou do Angico, na língua Guarani.

A divisão do General Curado, depois da celebre batalha de Catalán, retirara-se para a margem direita do Quaraí, distinta e pujante com os louros dessa batalha, e das de Arapeí, Missões. Carumbé e Ibirocaí, depois de expelir para além dos confins da província as hostes de Artigas, e de em três meses recuperar o extenso território desde Missões até Quaraí, de que o inimigo se havia assenhoreado com incrível velocidade. Convinha, porém, expurgar completamente de aquém do Uruguai essas hordas barbaras, que tão devastadoras e infensas tinham sido ao solo ocupado, e que de novo tomavam nos campos de Montevideu uma atitude hostil e ameaçadora. A divisão pois teve de deixar aquela posição; e a coluna Abreu, que tão gloriosa parte tivera naqueles sucessos, a substituiu na duplicada tarefa de defender e segurar a fronteira. Seguido de seu ajudante, a quem apelidara com o titulo científico de – engenheiro de acampamento –,  e menos por sua capacidade profissional, do que para bem merecer a categoria de fundador de povoações, o enérgico chefe passava as manhãs na colina mais vizinha do Passo-geral a estender a sóga (2), com que traçava instintivamente os cimentos da futura capela.

Do Passo-geral começa a erguer-se uma colina, que a pouca distancia, e como sua primeira ondulação, entra e se confunde na coxilha sobranceira e paralela à margem ocidental do Ibirapuitã, e que se desdobra por uma extensão imensa até o encontro da grande Coxilha de Santa Anna, que vai terminar no Uruguai, alimentando com fontes perenes os dois Ibirapuitãs classificados em guaçú e chico (grande e pequeno), o Inhanduí, o Ibirocaí (rio de pau de canoa), todos tributários do grande Ibicuí (rio de areia), um dos maiores membros do sistema fluvial da província. É nesse risonho sítio que se edificou a atual vila de Alegrete, para cujo fundamento contribuíram o prestigio dos heroicos feitos de armas do General Abreu na guerra contra Artigas, e a sua autoridade militar, elementos estes de que sempre se lia de ressentir aquela povoação.

(2) Cordel comprido de couro, que se ala no animal, que sequer conservar preso em lugar onde possa pastar.

Já das vizinhas matas se derribavam os angicos, os ipês e os torumans seculares, e das ribas pedregosas do Ibirapuitã desapareciam, como por efeito de incêndio, as toceiras do santa fé (3) e o flexível caraha (4) para a construção das casas, e da igreja onde se devia recolher e adorar a imagem da Virgem Aparecida, depois do seu miraculoso resgate do poder dos artiguenhos, que a tinham arrebatado da capela de Inhanduí, quando em suas primeiras correrias incendiaram aquela sucursal, e que merecia particular veneração do chefe da coluna por tê-lo (como ele dizia) livrado sempre das balas inimigas.

Do devoto serviço de traçar as dimensões da igreja compartilhava o sisudo capelão da coluna, que, com uma fisionomia bíblica, e sem alterar o seu andar grave e solene, sempre de acordo com o seu carácter místico e balofa corpulência, olhava o trabalho através de dois grandes vidros, que lhe mascaravam a frente, e indicava com o dedo engastado num ingente anel os pontos que devia abranger o recinto do santo edifício.

Aventureiro no Continente, e por especulações simoníacas entre um povo generoso e ingénuo, cheio de fé e de crença, o bom Padre, a pretexto de auxilio para a construção de uma igreja em país além do Atlante, e cujo orago, por seu assenso manifestado milagrosamente, como ele só afinava, o havia incumbido dos aprestos para essa obra pia, granjeava, mediante o seu sacerdócio impuro, e com uma consciência elástica, um pecúlio em moeda e bestas para o próprio passal. Uma copia viva do polposo Gil Peres de Lesage, mesmo em seu acanhado sensório, nesta criação faceta da natureza o pincel do caricaturista não dependia dos traços de um pensamento fantástico para expor aos dilettanti uma composição risível, um completo exemplar para uma nova epopeia cómico-burlesca.

(3) Uma espécie de gramínea com que se cobre as casas.
(4) Outra gramínea, que tem a flexibilidade do vime.

Em quanto os aventureiros entre-rianos, dirigidos pelo seu famoso cheio, lançavam os fundamentos da capela do Alegrete, a companhia dos naturais lanceiros com o seu capitão Chico, que formava uma parte integrante da coluna Abreu, e com ela compartira os louros, que a fortuna da guerra dispensara com mão larga a esse general, construia um apêndice da capela, que devia servir para o seu alojamento sob o titulo de aldeia. Não era sem o concurso da gente da raça guarani, que se empreendiam essas povoações nas vastas e remotas campinas do Continente. Submissos no trabalho por mais rude e assíduo que fosse, nimiamente sofredores nas privações, e pouco exigentes no serviço dos brancos eram os guaranis considerados como a parto indispensável e mais interessante dos elementos materiais que entravam na formação desses estabelecimentos; sendo para tal fim atraídos por promessas falazes, por ajustes leoninos, de que só se realizavam os deveres da parte contratada.

Mui suscetível de impressionar-se dos princípios da religião, do sentimentalismo e do maravilhoso; sugeria a uma intelectualidade abstrata; de uma compleição indolente, linfática; sem energia, sem os improvisos, a penetração, o fogo de um génio ardente audacioso, a tribo guarani recebeu dos seus primeiros civilizadores, os Jesuítas, com um preceito divino, a doutrina insidiosa e infamante, que lhe prescrevia, como a uma raça banal e maldita, a servidão e a ignóbil sujeição aos brancos. Esta herança fatal e cavilosa tem sido transmitida, como um legado sagrado, de geração a geração... e o será até a consumação dos séculos! Seus pais a herdaram dos Jesuítas, eles a legaram a seus filhos com toda a sua perfídia original, e estes não curaram de alienar de seus descendentes tão abjeta condição. Raça degenerada pelo homem civilizado, por ele prostituída, votada sempre à escravidão e à ignomínia, terá de permanecer até a extinção do seu último individuo neste estado de degradação e aviltamento, seja pela sua apoucada inteligência, ou por essa preocupação tradicional do anátema divino, a que supõe-se condenada.

Vitima de uma civilização errónea e corrompida, proscrita, aniquilada já, reduzida a pequenos grupos nessas povoações teocráticas do Uruguai, que formam uma parte dessa criação ciclopeana dos Jesuítas na vasta região do Guaira, ou amontoados em alguns recantos das povoações e estâncias da campanha, ou sem habitação fixa, levando uma vida nómada ou selvática nos campos, e nas extensas florestas da serra geral, rojam na miséria, e na indolência e ociosidade; e, como a horda de charruas e minuanos, disputando com as matilhas de chimarrões (5) a posse da avestruz e do poldra da bagualada (6) com que se devem alimentar, ou, em fim, estimulados pela fome e nudez entregam-se á rapina nos campos , de cuja propriedade primordial foram atrozmente esbulhados: e é desta condição degradante, que fica muito abaixo da que lhe competia em relação à sua origem livre, e á sua índole dócil e pacifica, que provem o antagonismo natural e indefinido do índio contra o branco, e essa dissimulação e ar de infidelidade que se discrimina em seu procedimento, quando se acha ao serviço de outros que não sejam os de sua raça, aos quais trata com as mais puras e leais afeições, o lhes procura todos os meios de formar o seu bem-estar.

Pouco distante da colina em que se traçava a capela de Alegrete, estende-se outra menor, separada daquela por uma quebrada (garganta) do terreno, em cujo fundo serpeava uma sanga (sanja), que ia abicar no Ibirapuitã, e servia de esgoto ás enxurradas. Esse sitio de menor superfície, e em gradação mais inferior, foi o designado para o alojamento da companhia de lanceiros, que ao depois tomou o nome mais significativo da aldeia. A quem não conhecesse o indeclinável divórcio, que subsiste entre as duas raças, esse muro de bronze que as separa, e que só há de desmoronar-se com a extinção dos indígenas; só pela simples comparação desse local com o da capela, lhe seria manifesta essa deplorável rivalidade, que por três séculos tem enchido de acerbas dores os corações bem formados. Em breve tempo fantasiou-se ali um grupo de copes (7) com suas ramadas na frente, e a cujo delineamento e obra presidiram a confusão e a negligencia. 

(5) Bandos de cães bravios, vagando nos lugares onde pasta a bagualada.
(6) Manadas sem numero do animal cavalar, que andam montadas e sempre a corso com incrível velocidade.
(7) Pequenas cabanas construidas de madeira e palha, em que habitam os índios guarani.

Além da necessidade, que pungia os guarani para a fabricação do seu alojamento, de se garantirem da intempérie das primeiras geadas do inverno, que já em Abril começam alvejar os campos ; cumpria-lhes também celebrarem a paixão de Jesus Cristo na quaresma daquele ano, segundo as formulas praticadas pelos jesuítas, e que lhes foram transmitidas com zelo, perseverança e acatamento. Esta piedosa comemoração, interrompida pela guerra com dor mística dessa gente, devia exercitar-se então em grande aparato, e com todo o apuro de sua dedicação ao Crucificado, menos por intrínseco sentimento de crença ortodoxal, do que por imitação e costume tradicional; convencendo-se devotamente de que, quanto mais se manifestassem contritas as consciências, e votadas a toda a expiação; quanto mais compungentes fossem suas oblações propiciatórias, melhor aplacariam a cólera divina em que supunham ter incorrido pela involuntária interrupção da serie ânua desses atos.

A religião, na fraca e acanhada inteligência dos guarani, torna-se para eles o mais forte, e por assim dizer, o único habito moral da sua vida: o objeto mais essencial que ela lhes apresenta, e que lhes sugere a mais escrupulosa atenção, é o culto explicito das imagens exercido com estrépito e aparato singelo; e o ministro deste culto, que eles olham como o dispensador das graças celestes, que pode pela forca maravilhosa de suas orações, e interposição de oferendas, amenizar a intempérie das estações, neutralizar os males físicos e aflições da humanidade, fazer abundantes os frutos da terra, e predispor o caminho para a felicidade eterna atrai facilmente as suas mais vivas e ternas afeiçoes, e tem sobre seus ânimos um predomínio exclusivo. É assim que com esta suscetibilidade ascética fundaram os jesuítas esse predomínio, e lhe revestiram de tal consistência, que, atravessando os tempos e afrontando a luz da civilização, ainda deve preponderar até o desaparecimento do ultimo individuo genuíno da raça.

II.
O Concurso festivo.

O boato da ereção da capela de Alegrete com a aldeia acessória, e de que os guarani da coluna Abreu se propunham a restabelecer ali a celebração ânua da paixão de Jesus Cristo, tinha divagado de estância a estância, de povoação a povoação, e chegado mesmo ás sete Missões do Uruguai, essas reminiscências verminosas, e padrões seculares do imenso poderio dos filhos de Loyola.

A par dessa noticia ia medrando a fama das proezas bélicas desse chefe, que por muitos anos teve a vitoria atada aos tentos do seu lombilho (8), e que restituiu heroicamente à lide marcial, sucumbindo na batalha de Ituzaingó, os títulos e honrosas condecorações que ela lhe havia brindado com mão generosa. A presença deste bravo e singelo filho do campo enlevava todas as considerações, e atraía todas as simpatias; tinha um absoluto domínio sobre todas as convicções, todos os alvedrios... Como é que se pôde definir esta preponderância deslumbrante, esta espécie de magnetismo, que é propriedade do guerreiro feliz, do homem que melhor sabe reprimir a comoção que sugere a presença do perigo, que sobrepuja a essa alienação rápida que surpreende todas as suas faculdades? Como essa superioridade moral, que tem o seu melhor apoio em factos de armas, e este ar de autoridade, que mais impõe a homens simples, do que aqueles que tem a razão mais cultivada?

Tais noticias puseram em movimento para o Passo-geral do Ibirapuitã numerosos bandos das diversas raças que habitam o departamento de Entre-rios até ás suas mais longínquas paragens.

Não era sem interesse ver uma família guarani em viagem. O seu chefe tinha a precedência na marcha, arriando (9) os cavalos que não eram montados; vestido mui singelamente, envolvida a cabeça em um pano, e cingindo a cintura o inseparável cheripá (10), do qual pendiam a guampa, e a faca encastoada em tangori, apresentava-se apto para voltear o laço e as bolas, e a disparar sobre a bagualada, quando vinha em um cordão incomensurável reconhecer os viadantes, ou sobre a avestruz, que fugia com carreira tortuosa, e equilibrando-se nas asas estendidas. A pouca distancia dele ia a china, mãe da família, cavalgando o animal mais pacifico da tropilha, e cobrindo-lhe a cabeça e as faces um lenço vermelho (panhoêlo puitam), que se confundia com a cor de seu rosto, mais aproximado à linha circular que à oval. Se tinha filhos pequenos, trazia-os engrupados sobre a montaria, e ligados a si com o cheripá; e na sua falta gozava das honras da garupa o perrito mais mimoso da numerosa matilha, que a seguia de perto, o qual se sustinha por si mesmo, equilibrado em sua posição, ainda que a cavalga dura galopasse, pelo habito que tinha de ser assim transportado. Pendiam aos lados do lombilho, e cruzando o assento por baixo do pelego, (11) a maleta e o possoêlo, que continham o vestuário festivo da família; e circundavam o colo esguio do paciente animal rolos de sogas, e enfiadas de porongos cheios de água para a jornada. 

Pejado de gelos, e impelido pelo violento e frígido Minuano (12), entrava o inverno despojando os salsos e as timboubas de sua linda folhagem, e amarelecendo os campos. No crepúsculo da tarde já não se ouvia o saudoso piar da codorna, que agachada na touceira de macega, evitava temerosa as garras do carnívoro chimango, que esvoaçava em redor. Já o garruto e vigilante quero-quero não estendia os seus voos muito além dos banhados, e posto num desplante quase vertical esperava atento o inseto com que se alimenta, e que nos lugares mais relvosos busca abrigo contra os arremessões do Minuano. O cope indiano de Alegrete já acolhia o soldado de formas atléticas do capitão Chico, e sua família; e à porta de sua cabana via-se cintilar com a luz do sol a temível lança, que tantas vezes se enristara contra os artiguenhos, e que aí se hasteava durante o dia, como o marcial distintivo de um lanceiro de Abreu. As famílias guarani, que ocorriam para a piedosa celebração da paixão do Redentor, tinham hospedagem aberta na aldeia: sendo-lhes comum o trabalho e aprestos que procediam esse ato, afim de preenchê-lo sem omissão da menor solenidade, sem deixar-se de observar escrupulosamente os preceitos tradicionais que lhe eram atribuídos, e que os velhos índios tinham bem impressos em sua memoria.

(8) Para bem compreender esta frase local, cumpre saber que nada assegura tanto o ânimo e pujança do cavaleiro do Sul, e firma sua esperança, como o laço que traz enrolado ao lado direito da garupa, e preso a atilhos de couro, a que chamam tentos.
(9) Palavra que equivale a arrebanhar, ou levar diante de si uma ponjão de animais cavalares ou vacuns.
(10) Pedaço de baeta de cor frisante, com que os homens do campo cingem o ventre, e serve para diferentes místeres.
(11) Pelego: pele de cordeiro que serve de cochim sobre o lombilho. Maleta: sacco estreito com dous fundos para conduzir fato. Posoêlo: alforges de couro cru, que se traz sobre a garupa.
(12) Vento do Oeste.

III.
Domingo de Ramos.

Era Domingo de Ramos [15 de Março]; e ao primeiro alvor do dia, depois da chamada militar dos lanceiros, dirigiu-se a companhia, de mistura com os seus hospedes, ao mato vizinho; e, passado algum tempo voltaram para a aldeã processionalmente e conduzindo cada um índio uma grande braçada de folhas da palmeira geribá, que servissem para colmar as cabanas onde se devia exercer o serviço divino durante a semana da paixão, e representar os últimos martírios do Salvador.

Este préstito misterioso, imitando a oração triunfal do Homem-Deus, quando se apresentou às portas de Hyerosolima [Jerusalém], executou-se silenciosamente e com regularidade militar: e os índios, envolvidos nas folhas, semelhavam massas moventes de verdura, que caminhavam para a aldeia por própria ação, a formar os recintos em que se deviam praticar aqueles atos expiatórios. Nesse dia, precedendo a bênção da cabana, que devia servir de santuário naquela solenidade, aí celebrou missa o capelão de Alegrete, anunciando à devota assembleia que ia começar a semana em que a cristandade comemorava a paixão de Jesus Cristo, e devia manifestar-se contrita por piedosos exercícios, e por atos expiatórios de penitencia.

Ao mesmo tempo que se construia a cabana onde se de viam observar os ofícios divinos, outra se elevava á pouca distancia dela para os exercícios flagelatórios daquelles que se dedicavam à penitência afim de aplacar a cólera da Divindade, e torná-la propícia, dilacerando com rudes açoites suas próprias espáduas, e suportando com estoica resignação os mais bárbaros tormentos.

Na tarde desse dia, e em reunião geral dos aldeões apresentaram-se ao seu chefe os que se propunham à penitência. Depois de uma breve elocução da mui acatada autoridade, enunciada no idioma guarani, em que significava quanto seria do agrado da Divindade (Tupâ) a pública e espontânea dedicação a esse ministério expiatório da mais exaltada crença, devido menos a um pensamento de dor moral e de eternidade, que ao de excitar a admiração por um robusto sofrimento nas torturas da flagelação e das macerações corpóreas, dispersou-se a assembleia, tributando, desde logo, deferências e homenagens aos candidatos à representação simbólica do Redentor, e contemplando-os como predestinados por uma inspiração celeste para exercerem as funções mais augustas e religiosas na celebração a que se dedicavam.

O numero dos penitentes era indefinido; mas, dentre eles o que mais duramente se atormentasse, o que mais sangue vertesse nas flagelações que se impunha, e que se sustivesse na mais absoluta abstinência, era o escolhido para representar naquela cena o papel de Jesus Cristo.

Os homens que se apresentavam para tais provas de um fanatismo sublimado ficavam logo separados de suas famílias e sócios; manifestando por este total isolamento que, como se considerassem eles os maiores pecadores, e os que por suas profanações às coisas santas, tinham incorrido na cólera celeste, eram indignos do trato humano em quanto se não purificassem por um modo, que aplacasse essa cólera, e assim fossem restituídos ao grémio dos fiéis.

IV.
A penitência.

Os dedicados a este ministério, que desde logo foram encerrar-se na cabana da penitência, começaram as suas flagelações na quarta feira de trevas. Nus da cintura para cima, ajoelhados, silenciosos, com a cabeça inclinada para o chão, a mão esquerda sobre o peito, e a direita empunhando um látego de couro, com ele descarregavam sobre suas próprias espáduas amiudados golpes com a mais rude impassibilidade, e sem o mais leve indicio de sentimento de dor. Dir-se-ia que estátuas de cobre por um oculto maquinismo figuravam aquele perene movimento.

Dia e noite eram os penitentes empregados neste descomunal exercício, que macerava o corpo, e atenuava as forças; privados de alimento, e assistidos de um servente, que era empregado em fazer sarjaduras nos lugares mais contusos do corpo para evitar a coagulação do sangue. O que via à roda de si o chão mais ensopado do sangue que vertia de suas feridas; o que mais cruamente rasgava as suas carnes, e que mais vezes caía por terra desfalecido, e inanido de alento, deixava entrever em seu aspeto, quando suas dores o consentiam, um ar de vanglória de ser talvez o predestinado para simbolisar o Homem-Deus em seus martírios e sacrifício humano. Ufano com esse pensamento, ele já se afigurava como o mais esforçado vencedor do espírito mau (Anhâ), e como o que mais valentes provas tinha dado do seu desprezo da dor, e por isso com direito à admiração e deferência dos da sua raça, que invejavam tão assombrosa dedicação. A vaidade supersticiosa, ante que a genuína fé cristã, dominava o espírito tão fraco e tão contraído destes filhos singelos da natureza selvagem, que, quando se não pudesse dizer que estavam no seu estado normal, com verdade seriam julgados como induzidos a erro, ou porque entrassem na sua primitiva civilização alguns elementos inspirados pelo fanatismo religioso da idade media, ou porque os sucessores dos jesuítas, abstraídos inteiramente daquela missão, de nada mais curassem que de neutralizar neles os atributos da razão para o melhor complemento dos seus fins. A tribo guarani, tão dócil, de um ânimo tão flexível, tão rica de suscetibilidades sociais, tocou o ponto do começo do seu aniquilamento da extinção dos filhos de Loyola. De sua transição do regime teocrático, austero, porém de absurda prática desses audaciosos doutrinários, para a dura servidão portuguesa, teve o principio a espantosa cadeia de males que o destino lhe lançou, e que a tem arrastado à ultima degradação e miséria.

O dia de quinta feira de Endoencas [19 de Março] foi ocupado nos aprestos para a procissão de enterro, que teria lugar no seguinte, O interior da cabana que servia de casa de oração estava coberto de preto, e sobre uma banqueta alta, construida de varas e revestida de pano branco, via-se colocado um crucifixo entre duas velas acesas, assentadas em castiçais de barro. Outras velas, engastadas em estacas de taquara, bordavam o recinto da casa, cujo pavimento era juncado de folhas de mata-olho; e ao lado direito da entrada via-se presa à parede uma guampa com agua benta e hissopo de cabelo para as aspersões dos que iam visitar o santo albergue, e oscular a peanha do crucifixo.

As imagens do Salvador e dos Bemaventurados, que formam o cortejo celeste, eram obra das mãos dos índios, qualquer que fosse a matéria de que para esse efeito se servissem, Sem as mais superficiais noções artísticas, só com a habilidade que sugere o natural discernimento, e por génio de imitação, fabricavam eles esses e outros muitos objetos com suportável execução, posto que nas imagens se divisassem impressas essas formas características do tipo indígena, essas atitudes e estilos que lhe são peculiares. Assim ó que a copia do gentil e nítido semblante de Santo António era formulada pelo fusco carão de um índio quinquagenário, com todas as suas feições e gestos agrestes, e o cabelo hirto; e o Divino Filho da Virgem de Idumeia, que se assenta nos braços do canonizado paduano, expondo idêntica fisionomia à de uma criança índia, tinha por vestes um ponche de seda orlado com fímbria de ouro, Destas imagens andavam sempre providas as maletas das chinas em suas viagens, e, como os Penates dos Romanos, eram expostas no interior dos copes,
quando os podiam construir para receberem as manifestações devotas da família.

Em ponto do meio dia, e ao rufo surdo de um tamboril coberto de pano negro, que se fez ouvir em todo o contorno da aldeã, começou a reinar o mais profundo silencio.

Tomaram as mulheres uma vestimenta negra, e soltaram os seus longos cabelos de ébano, em sinal de luto e dor, desatando-se de todos os laços sociais e místeres domésticos, e jazendo sentadas em um canto da cabana, imóveis, lastimosas, com as cabeças inclinadas para o chão, e no estado de um absoluto recolhimento moral. Nem o filho pequeno, que choramingava-lhe ao lado por falta de alimento, nem o cãozinho favorito, com o qual é tão meiga e complacente, e que exigia as habituais carícias, a retiravam desse estado de arrobo místico e exagerado ascetismo.

Uma cena tocante ocupou a espectação publica, à noite e depois da adoração do crucifixo, que se executou ao som de uma vozearia estrondosa e fúnebre, c com uma musica sepulcral. Prestada aos pés da banqueta que servia de sobpedâneo ao crucifixo, a índia que excedia as outras em longevidade, desferia um pranto lúgubre e horroroso à maneira das antigas carpideiras nos funerais, e balbuciava algumas palavras no seu idioma, entrecortadas de arquejos e soluços pavorosos. A horrível Sara americana, de guedelhas soltas, por entre as quais mal se enxergava um semblante engelhado e cadavérico, de mãos postas, e deslisando contorsões colubrinas para empregar mais veemência em suas vociferações, extasiava em redor de si uma multidão de povo, estupefacto de um quadro tão assombroso. Via-se nos índios a consternação, o enternecimento, e a contrição idiota que se deriva da impressão de objetos de terror, e não da comoção de uma consciência ascética; e mais de uma lágrima caía-lhe dos olhos misturada de soluços, que em pouco tempo se convertia em pranto geral e contagioso : e nos brancos, o característico do desprezo e escárnio, revelado por um gesto mofador. que de certo daria origem a algum desaguisado entre as duas raças sempre em rixa, sempre divorciadas, se por ventura os índios estivessem menos habituados a sofrer da parte dos brancos o trato mais ignominioso, e injuriosa zombaria pelos atos da sua crença religiosa. A compunção e piedade que a espantosa carpideira ganhava daqueles pelos seus lutuosos acentos e exclamação sibilina, perdia nestes por efeito do seu aspeto hediondo e horrível, e das suas gesticulações mímicas. Os olhos que lacrimosos contemplavam o símbolo do nosso resgate, em que
foi vitimado o Salvador, não podiam exprimir um pensamento doloroso, quando da cruz desciam descridos para a forma mosaica da tanajura secular.

Por um estudo continuo e aprofundado sobre a índole e compleição dos indígenas, e sobre suas acanhadas faculdades intelectuais, entenderam os jesuítas, seus primeiros civilizadores, que maior impressão fariam neles as ideias, que fossem representadas por objetos materiais, por ações físicas, que pertencem à possibilidade do homem, do que o pensamento moral, esse complexo de partes abstratas, que só compete ao domínio da potencia intelectual.
Queriam eles que os princípios religiosos falassem antes aos sentidos do que à imaginação; e é por isso que dos preceitos da crença, de que foram imbuídos os guarani, compreenderam estes que, materializada a divindade do Homem-Deus, ou transubstanciada em faculdade discernível, teve de achar-se na terra em luta com o poder infernal, que com este guerrearam as coortes celestes, vindo por fim a sucumbir o Filho de Deus, e a ser supliciado na cruz.
Preocupada cem estas insinuações erróneas, a deforme energúmena engrasava em sons inarticulados, monótonos roucos e lúgubres, algumas frases isoladas, que no próprio idioma exprimiam os essenciais atributos do Redentor, a dor dos seus martírios, e a cólera e indignação
pelo suposto triunfo do espírito das trevas, e a consumação do cristicídio. Nesta emfática e lastimosa apóstrofe ouviam-se repetidamente as palavras: - Christó opá anhundojára!.... omanó catu!! - (Cristo foi morto pelo demónio!.... sim, padeceu morte!!); e a elas seguiam-se vociferações horríveis, e exclamações descomunais, que produziam terror e espanto no animo dos índios que ali se achavam. Esta cena estranha, que ao mesmo tempo inspirava sentimentos opostos. de dor e de riso, durou algumas horas; substituída a carpideira, que a representava, depois de rouca e inanida de forças, por outra que tinha o mesmo devaneio de compungir o auditório, e dessarte fazer jus ao salário estipulado para semelhante exercício, o qual ordinariamente consistia em um trago de canha (copo de aguardente de cana) oferecido na pulperia do Pechincha, donde se retirava ébria e possessa de espírito mui diverso daquele que uma hora antes lhe ocupava a mente... Que transição !

Em toda a manhã de sexta feira [20 de Março] não se enxergou na aldeia pessoa fora de casa: parecia que havia sido abandonada dos seus habitantes e hospedes, ou que tivera lugar um daqueles movimentos imprevistos e rápidos, a que os Cossacos de Abreu estavam habituados para obstar alguma tentativa ou correria das hordas de Artigas. Talvez que se pudesse dizer que dominava ali o silencio dos túmulos, se os que se haviam dedicado desde quarta feira de trevas ao flagelo penitenciário suspendessem tão mortificantes provas de fanatismo brutal. O som compassado e surdo dos açoites, e o zunido rouco e monótono das cigarras, que, pousadas no espinilho (13), ainda sussurravam sua despedida aos últimos dias do moribundo outono, era o que ali revelava fracos sinais de lânguido movimento e frouxa vida.

Este exame foi cometido à autoridade militar do capitão Chico, que, para realizá-lo convocou a conselho os oficiais da companhia, os quais, ornados com as insígnias de suas graduações, dirigiram-se para a cabana expiatória, e aí aventaram esse caso com a consciência de austeros julgadores, que vão a decidir da existência de um grande culpado. 

Instituído, pois, um minucioso exame sobre provas tão barbaras, designou-se definitivamente o mísero paciente, sobre quem deviam ainda pesar novas e severas flagelações. Estremado ele dos seus consócios do martírio, deu-se por finda a penitencia, e, depois da retirada pesarosa dos outros candidatos à representação do Salvador, por não terem obtido a preferência, lançou-se-lhe uma tipoia (14) do cor negra, cingindo-lhe a cintura um cordão de couro da mesma cor.

Apenas anoiteceu, a repetição da scena das carpideiras excitou outra vez a curiosidade piedosa do povo guarani, que corria em grupos para o sitio onde ela ia reaparecer. O crucifixo, que se colocara sobre a banqueta da santa cabana, foi substituído por uma cruz preta, assentada em peanha de barro, e de cujos braços pendiam tiras de pano branco.

(13) Arbusto pertencente á família das Mimosas.
(14) Vestimenta talar, á imitação da antiga tunica, que as mulheres Guaranys trajam em casa.

V.
A Procissão de enterro.

Eram 10 horas da noite de sexta-feira. O tempo estava sereno, e o claro da lua mal podia penetrara densidade do vapor atmosférico, que, subindo, aglomerava-se sobre o circuito da aldeia, e caia em moléculas subtilíssimas humedecendo a terra. Ouvia-se ao longe os agudos acentos do jaguarete pousado no mais alto angico, e os rugidos do guarachaim em seu curso noturno.

Um sussurro inqualificável, e o separar-se para os lados em duas partes o povo que tinha afluído para o contorno da cabana consagrada ao santo ministério, denunciaram que ia aparecer a procissão do enterro, longo tempo esperada. Todas as vistas, todas as atenções convergiram para aquele ponto; e a presença acatada do chefe de Alegrete, trajado de aparatoso uniforme, impôs maior silencio do que aquele que devia sugerir a representação fúnebre de um ato, que os guarani profundamente reverenciavam.

Precedia ao préstito funeral uma cruz alta feita de taquaruçú, e hasteada por um menino envolvido numa vestimenta roçagante de cor preta, e cobrindo-lhe a cabeça um pano branco, sobre o qual assentava uma coroa de espinhos. Aos lados da cruz. e com os mesmos envoltórios, marchavam dois meninos com ciriais de taquara, em que ardiam velas de cebo. O exterior da procissão era guarnecido por duas alas de lanceiros, em traje de guerra, em numero de 50 a 60, empunhando ciriais semelhantes aos que iam aos lados da cruz que abria o préstito. No intervalo das alas movia-se lentamente, e com um ademan devoto e melancólico, uma numerosa fileira de meninas, vestidas de túnicas de pano branco, com os cabelos soltos, e coroas de espinho sobre suas cabeças, que se inclinavam para o chão: cada uma delas conduzia em suas mãos uma forma simbólica, e em miniatura, dos objetos que figuraram no martírio e paixão do Crucificado, e dos atributos físicos e morais, que se reuniram à sua essência divina. Viam-se nesta série, entre outros emblemas, o galo que com o seu tríplice canto revelou Pedro a culpa da sua estranha negativa, os trinta dinheiros que recebeu o discípulo traidor, o azorrague, a lança de Longuinhos [Longino], a escada do descimento, a coroa de espinhos, os cravos; assim também os peixes e pães reproduzidos nas bodas de Caná, a espada com que se armou contra o espírito das trevas, representado por um dragão de colo entonado, e as insígnias que lhe compeliam como o Rei profetizado da Judeia. Fechava a procissão um grupo de músicos, garganteando uns a ladaínha com uma voz chula e dissonante, e outros fazendo guinchar com sinistro alando algumas rabecas, obra de suas próprias mãos ; levando os que iam na frente deslocadores, e pregados no dorso, grossos cartões de musica, representada por grandes notas sobre pedaços de couro.

Como uma parte adicional da procissão seguia-se logo outro grupo armado de lanças, em cujo centro se distinguia, com as mãos atadas, diadema de espinhos na cabeça, e túnica preta, o miserando penitente, sobre quem tinha recaído a escolha para simbolizar o Homem-Deus, e que se pavoneava de que sua constância e sofrimentos assombrosos lhe dessem a preferência de apresentar-se em holocausto e vitima propiciatória ao Criador para remir a criatura. Com passos mal seguros, e aspeto aonde se vislumbrava entre os sinais de rudes tormentos o entusiasmo supersticioso de ter chegado a merecer a atenção publica, e a especial veneração dos da sua raça, pela firmeza e resignação com que se houve na severa flagelação de que saíra, caminhava o martirizado representante do Salvador, a quem os da escolta que o cercava não poupavam azorragadas, violentos arremessões, bofetadas e insultos ignominiosos.

Com este grupo ia um pregoeiro que, sempre que o prestito suspendia a sua marcha, apontando para o martirizado, e com atitude pujante, exclamava com detestável pronunciação a forma sacramental— Ecce homo —. Ouvindo esta exibição, o misero preconizado por um doloroso esforço estirava o corpo, elevava a cabeça (querendo sobre sair ao grupo que o circulava, e em um desplante ridículo, trabalhando para arremedar um gesto bíblico, manifestava a enfática alucinação de que se achava dominado por haver atraído a vista dos espetadores, e persuadir-se que os tinha ensopado em sentimentalismo religioso, o abismado em profunda consternação. Pelo contrario, se pelos gestos e sinais externos podem-se discernir os sentimentos íntimos, os brancos com um sorriso mofador revelavam um pensamento de dó por tão miseráveis apreensões e preconceitos, e os índios faziam só apreço do desgarro do energúmeno, e da gesticulação horrível com que ele suportava os golpes do azorrague.

Após este grupo, e pondo fecho a todo aquele espetáculo, ia uma mulher desfalecida nos braços de um índio, que representava a mãe do Crucificado, sustida pelo Evangelista que assistiu à sua paixão. Tinha por séquito uma multidão de mulheres, que levavam ao seu lado seus filhos menores de mãos postas, e que caminhavam vagarosamente com luzes nas mãos lavadas em prantos, e soltando arquejos e soluços. Em presença desta cena caíam de joelhos os índios que a observavam; e num arroubo extático e devoto batiam nos peitos com veemência.

Depois de um giro prolongado e vagaroso, que durou até a meia noite, dissolveu-se a procissão como por um encantamento, tomando cada comparsa diferente direção confundindo-se na massa dos espetadores.

Conclusão.

Ao primeiro clarão da manhã de sábado [21 de Março], ouviu-se o tambor da aldeia, acompanhado de pifanos, anunciar a aleluia em rufos descompassados e em dissonantes assobios. A cabana da penitencia tinha desaparecido, e em seu lugar hasteara-se um poste elevado, donde pendia um mal formado manequim, figurando o traidor Escariota, que tinha vendido o Divino Mestre; o qual arrancado de sua posição pelo laço de alguns cavaleiros, em poucos momentos foi reduzido a mil pedaços.

Ao tambor, que não cessou de rufar, congregaram-se vários tangedores de viola e rabeca, e em breve tempo o mais desentoado alarido de mistura com festivos hosanas difundiu-se da aldeia à capela de Alegrete; e esta retumbante folia, com um séquito numeroso de mulheres e crianças, trajados de gala, e em cujos fuscos semblantes reluziam a alegria e o contentamento, corria as ruas proclamando a aleluia e recebendo a espórtula de tão festivo anúncio. Depois de feita a coleta, cujos contribuintes eram retribuídos por uma ruidosa fanfarra, o bando folgazão recolheu-se aos seus copes, conscienciosamente pago de ter, segundo as regras e preceitos tradicionais da sua primitiva associação, desempenhado com o possível escrúpulo a celebração da paixão de Jesus Cristo.

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Fonte
José Joaquim Machado de Oliveira, "A Celebração da Paixão de Jesus Christo entre os Guaranys (Episódio de um Diario das campanhas do Sul)", in: Revista Trimensal de História e Geographia, tomo IV (2.ª edição), Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1863, pp. 331-349 [nota: 1.ª edição em 1842]

A transcrição foi feita modernizando a ortografia e com anotação cronológica tendo por base a data de 22 de Março como o Domingo de Páscoa em 1818.